Concepções dos treinadores experts acerca do papel da competição na formação desportiva no Voleibol Brasileiro
Introdução
O desporto é apontado como uma das actividades humanas que mais contribui para a formação de crianças e jovens, invocando-se seus benefícios de ordem física, psicológica e social. A competição é parte indissociável do desporto, constituindo um dos meios de formação educativa, não só dos conteúdos específicos das actividades desportivas, mas também de diferentes valores psico-sociais, sustentáveis ao longo do desenvolvimento das crianças e jovens (Marques e Oliveira, 2002; De Rose e Korsakas, 2006). Actualmente, a prática desportiva de crianças e jovens está fortemente perpassada e indexada a uma única referência, o sucesso desportivo traduzido na vitória. (Brito et. al 2004; Mesquita, 2004). Arena e Böhme (2004) realizaram um estudo sobre os modelos competitivos do estado de São Paulo, no Brasil, mostrando que algumas federações desportivas (futsal, ginástica, natação, judo e ténis) promovem competições regulares nos escalões de formação, baseadas em modelos de competição de alto rendimento. Assim, é visto que, a estrutura de competição dos mais jovens ainda é alicerçada nos modelos vigentes na competição adulta, necessitando de ser urgentemente reestruturada (Drewe, 1998; Lee, 1999; Marques e Oliveira, 2002; Brito et. al, 2004; Fonseca, 2004; Marques, 2004; Mesquita, 2004; Paes, 2006). Wiersma (2005) ao detectar problemas na relação das crianças com a competição no formato adulto nos EUA, propõe alterações no quadro competitivo.
A autora relata que o comprometimento competitivo das crianças deve ser feito de maneira progressiva, dirigido de acordo com a idade, maturação e desempenho desportivo, com materiais e regras adaptadas às primeiras fases de aprendizagem, até se alcançar os modelos competitivos adultos. Miller (1997) estudando alterações regulamentares no voleibol, afirma que os resultados de aprendizagem técnica, são substantivos, quando os recursos materiais são adaptados à prática desportiva de crianças e jovens. Marques (1999) explica que, para uma modificação efectiva no sistema competitivo, deve ficar claro a diferença entre os objectivos do desporto de alto rendimento e do desporto de formação. Enquanto que no desporto de alto rendimento a competição é o quadro de referência para a organização do treino, no desporto de crianças e jovens a competição deve constituir uma extensão e complemento do treino, o qual deverá primar pela educação e formação do indivíduo. Assim, o processo de integração de jovens nas formas de competição adultas deve ser progressivo, de maneira que sejam consideradas, 310 simultaneamente, a capacidade de realização e a predisposição para a participação, numa perspectiva de formação a longo prazo (Mesquita 2004). Marques e Oliveira (2002), advogam que as alterações a introduzir na organização, estrutura, conteúdos e critérios de avaliação das competições tem objectivos muito claros; torná-las mais compatíveis com as possibilidades e interesses de crianças e adolescentes, diminuir taxas de abandono, trazer mais jovens para o desporto. Deste modo, o presente estudo teve como objectivo identificar as concepções de treinadores experts, de Voleibol Brasileiros, acerca do papel da competição na formação desportiva dos atletas, nomeadamente na identificação dos objetivos da competição bem como do papel desta na organização do treino. Material e Métodos Dez participantes (n=10) fizerem parte do presente estudo Sete treinadores presentes no Campeonato Brasileiro de selecções estaduais, divisão especial – 2006, do escalão infanto-juvenil, masculino, o Seleccionador Nacional assistente do escalão infantojuvenil masculino e dois treinadores de importantes clubes de voleibol da região sul do país, que estavam presentes na competição referida. A amostra apresentou idade média de 45±13,8 e de 24,8±12,1 anos de experiência federativa no voleibol, sendo todos licenciados em Educação Física.
Os dados referentes à concepção dos treinadores foram recolhidos através da aplicação de um protocolo de entrevista semi-estruturada, focando as suas concepções em relação ao papel da competição na formação de jovens jogadores de voleibol. A entrevista aplicada suportou-se na de Fernandes (2004) a qual visava recolher informação sobre as concepções dos treinadores, relativamente à formação desportiva do jogador de Voleibol em Portugal. Em virtude da nossa amostra ser brasileira e portanto se referenciar a uma realizada sócio cultural e desportiva distinta a entrevista sofreu algumas adaptações de conteúdo, validadas pela método de peritagem. Para a validação fizeram parte o investigador principal e um perito na área do Voleibol, Doutorado em Ciências do Desporto e com vasta experiência na área do treino, no contexto da formação de jogadores tendo em vista o alto rendimento. Para a recolha da informação alguns pressupostos deontológicos e metodológicos foram considerados. Os propósitos do estudo foram explicados ao treinador e procurou-se criar um ambiente facilitador, assumindo uma postura não-avaliativa, enfatizando o interesse em conhecer a perspectiva própria e a opinião genuína do treinador. As entrevistas ocorreram durante a realização do campeonato brasileiro de selecções, ao longo da semana, sendo realizadas num ambiente tranquilo, pretendendo assegurar a privacidade e confiança para o aprofundamento das questões. Obtiveram-se gravações das entrevistas, que foram transcritas integralmente para posterior análise. 311 A grelha de codificação foi construída a partir do “corpus” da entrevista. A sua validação de construção suportou-se na literatura da especialidade (Bompa, 2000; Drewe, 1998; Fernandes, 2004; Marques e Oliveira, 2002; Mesquita, 2004; Wiersma, 2005) e a de conteúdo através do método de peritagem, tendo sido utilizado o mesmo par de peritos utilizado para a validação da entrevista. O tratamento da informação foi realizado através da análise de conteúdo, a partir da interpretação lógico-semântico das ideias prevalecentes em cada unidade de registro. Complementarmente recorreu-se à estatística descritiva para obter os resultados de frequências e percentagens de ocorrência, no sentido de permitir uma abordagem simultaneamente qualitativa e quantitativa dos dados. Apresentação Discussão dos Resultados Em relação aos resultados encontrados acerca dos objectivos da competição, todos os dez treinadores entrevistados realçaram o “incentivo para a aprendizagem”, sendo 40,3% do total de unidades de registro, relativas a esta categoria (Quadro 1). Quadro 1. Distribuição da frequência das unidades de registro e porcentagem das categorias na dimensão dos objectivos da competição.
Quadro 1. Concepções dos treinadores experts acerca do papel da competição na formação desportiva no Voleibol Brasileiro
A elucidar a importância da categoria, Incentivo para aprendizagem, apresentamos um excerto do Treinador 4: “A competição é muito importante em todas as modalidades, sem ela não existe evolução e aprendizagem eficiente, pois a criança só desenvolve-se tecnicamente e mentalmente se tem a possibilidade de superação…” Weinberg et al. (2000), estudando os principais motivos para a participação na prática competitiva de jovens, encontrou como principal causa, o sucesso obtido pelos jovens, baseado na afirmação das suas próprias competências físicas perante o grupo e consigo mesmo. Também Fernandes (2004) refere em seu trabalho, a motivação para a aprendizagem, como essencial no desenvolvimento das primeiras etapas de formação deportiva O Desenvolvimento psicológico obteve grande representatividade nas respostas às entrevistas, 39 unidades de registro (28%) foram descritas por 8 treinadores, demonstrandose um dos principais objectivos nas suas concepções. Em relação a esta categoria, os entrevistados consideram que a competição tem um papel fundamental no desenvolvimento da auto-estima, confiança e autonomia, sendo cruciais na gestão de situações de stress e pressão, apanágio da competição. Marques e Oliveira (2002) explicam que devem ser estruturadas situações em que as crianças se deparem com a pressão e o stress, mas de forma moderada, para que a longo prazo possa servir como um suporte para cargas excessivas. As categorias Feedback para o treino e Desenvolvimento Táctico, foram referenciadas, respectivamente, por oito treinadores e seis treinadores, atingindo 18% e 13,7% de frequências relativas.
Os entrevistados relataram no Feedback para o treino, atribuições como a identificação da qualidade e quantidade das componentes de treino durante a competição, constituindo um referencial do que deve ser melhorado ou do que vem sendo bem trabalhado no processo de treino. Exemplo disso é o excerto do Treinador 2: “É na competição que sabemos com quem podemos contar, às vezes a gente vê o menino muito bem no treino, mas não desenvolve no jogo, e na maioria dos casos, sabemos aonde que ele está falhando, não é apenas no psicológico, mas que está com dificuldade em algum fundamento e que deverá ser treinado.” No Desenvolvimento Táctico, os treinadores referenciaram que a competição tem um papel fundamental na compreensão do jogo, na leitura da equipe adversária e de cada jogador presente em quadra, no desenvolvimento de uma visão crítica e da inteligência táctica. Como refere Greco (2006), a competição tem como grande objectivo estimular a capacidade decisional dos jovens, ou seja, a partir dela desenvolve-se uma elevada exigência cognitiva no comportamento dos atletas decorrente dos problemas situacionais e exigências organizacionais das tarefas. Garganta (2002) explica que nos jogos desportivos os processos decisionais são dinâmicos, dentro de um marco sócio ambiental delimitado pelo contexto situacional específico, tendo a dimensão táctica um papel relevante na compreensão do jogo, e consequentemente na melhoria da performance. Para melhor compreensão dos resultados referentes à estrutura organizativa da competição, estes foram divididos em 3 etapas de formação desportiva a longo prazo, baseadas em Balyi (2001); Bompa (2000); Marques (1999), (Iniciação, Aprimoramento e Especialização/Rendimento). Nesta última não se registraram referências por parte dos entrevistados, assumindo desta maneira a sua concordância com os modelos vigentes actuais da organização competitiva. Nos quadros 2 e 3 são descritos os resultados encontrados na dimensão da organização do modelo competitivo nas etapas Iniciação e Aprimoramento. A categoria Participação Obrigatória, surge apenas na etapa inicial, referindo-se à passagem das crianças pela competição, onde a obrigatoriedade de todos competirem, independentemente do resultado obtido, é obrigatória. Com este procedimento pretende-se que os jovens ganhem competências de jogo, combatendo-se em simultâneo a exclusão desportiva. Mesquita et al. (2006) corroboram estes resultados, ao demonstrarem num estudo realizado com treinadores portugueses, que os treinadores de modalidades colectivas se preocupam, na etapa inicial, prioritariamente com a inclusão, expressa na obrigatoriedade de todos os jovens participarem ativamente na competição.
A categoria Adaptação Regulamentar, aparece descrita nas duas etapas de formação, com 62,4% e 54,6% de frequência relativa, demonstrando a preocupação dos treinadores na modelação do sistema competitivo, através da adequação de regras, materiais, regulamentos, premiações em função dos objectivos formativos. Estas preocupações vão ao encontro dos valores do Desporto, norteadores da formação pessoal e social, apontados pelos especialistas e investigadores do Treino Desportivo no âmbito do treino infanto-juvenil (Drewe 1998; Marques e Oliveira, 2002; Mesquita, 2004;Miller, 1997 e Wiersma, 2005).
Quadro 2. Distribuição da frequência das unidades de registro e percentagem das categorias na dimensão de organização do treino na etapa de iniciação de formação desportiva.
Quadro 2. Concepções dos treinadores experts acerca do papel da competição na formação desportiva no Voleibol Brasileiro
Quadro 3. Concepções dos treinadores experts acerca do papel da competição na formação desportiva no Voleibol Brasileiro
Referências
Arena, S., Bohme, M. (2004). Federações esportivas e organização de competições para jovens. Revista Brasileira de Ciências e Movimento. Vol. 12(4): 45-50, Dezembro.
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