Ritual e carreira das meninas que jogam bola1
Resumo
O estudo investiga a prática recreativa de mulheres nos esportes coletivos de confronto, em projeto sócio-educativo. Dialoga dados de etnografia realizada no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro com autores relacionados à Escola de Chicago. Apresenta: i) descrição das identidades em jogo no cotidiano das praticantes; e ii) análise de 40 praticantes que tentaram fazer parte de numa turma de futebol exclusiva de mulheres. Demonstra como o ritual que inicia carreira das novatas estabelece fronteiras simbólicas, que determinarão a possiblidade de permanência numa instituição pública de lazer. Apresenta apontamentos para debate sobre discriminação e inclusão social através do esporte.
Resumen
Este estudio investiga la recreación de mujeres en los deportes colectivos de confronto, en un proyecto socio-educativo. Dialoga datos de una etnografía en el suburbio de Rio de Janeiro con autores relacionados a la Escuela de Chicago. Presenta descripción de las identidades en juego en el cotidiano de las practicantes y un estudio de 40 practicantes que intentaron hacer parte de un grupo de fútbol de mujeres. Demostramos como el ritual que empieza la carrera de las novatas establece fronteras simbólicas, que determinarán las posibilidades de permanencia en una institución pública de recreación. Presenta apuntamientos para el debate acerca de la discriminación e inclusión social por medio del deporte.
INTRODUCCIÓN.
Desde o ano de 2006, através de pesquisa etnográfica, persigo compreender quais representações sustentam a permanência de mulheres no lazer, praticando esportes coletivos de confronto. Esses esportes são de tradição e predomínio masculino em nossa cultura. O local do estudo foi o Centro Esportivo Miécimo da Silva (CEMS), localizado em Campo Grande, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Neste artigo apresento, em primeiro lugar, uma síntese dos dados analisados até o momento, contextualizando as identidades em jogo no cotidiano dessas praticantes. Em seguida, apresento um recorte na turma de futebol exclusiva de mulheres. Meu objetivo no texto é analisar as interações sociais e apresentar a existência de um ritual que inicia a carreira das novatas e estabelece fronteiras simbólicas nessa turma. Utilizo o termo esportes coletivos de confronto como categoria analítica que identifica as modalidades da pesquisa – basquetebol, handebol e futebol/futsal2. Tomei como referência inicial o artigo de Dunning (1992)3, que descreve os “desportos de confronto” como aqueles que “constituem áreas privilegiadas para uma expressão socialmente aceitável, ritualizada e mais ou menos controlada de violência física”. A hipótese de Dunning é que, no avanço do processo civilizador de controle da violência, os “desportos de confronto” entre equipes se constituíam como área reservada de manifestação do espírito da “tradição do macho”. Os clubes onde se praticavam estes esportes seriam locais, controlados pelos homens, para garantir espaço de exercer a expressão de masculinidade e, de forma simbólica, “imitar, reificar, e caluniar as mulheres, que então, mais do que nunca, representavam uma ameaça ao seu estatuto e a imagem que tinham de si próprios” (p.410). A tradição desses esportes traz consigo a marca de uma atividade criada e praticada por homens, com características inerentes de agressividade4 e estratégias em grupo para o seu melhor desempenho. De outro lado, o papel social das mulheres, construído ao longo da história, está relacionado às atividades ligadas ao comportamento de passividade, submissão e exigência dos padrões de beleza e feminilidade. Segundo Mourão, relatando o século XX, “a simples prática de exercícios pela mulher representava socialmente uma violência a sua estética corporal, uma ameaça a sua graciosidade e beleza5” (1996, p.63). Demonstrando a força desse papel refletido no campo do esporte apontava-se a natação, as ginásticas, as danças e o voleibol6 como atividades sugeridas e incentivadas e as lutas ou esportes coletivos de confronto, como futebol e handebol, desaconselhados ou até mesmo proibidos por lei para as mulheres (MOURÃO 1996; SOARES, LEAL, LOVISOLO 1996). O bairro de Campo Grande é um típico bairro suburbano da cidade. Tem sua origem no período imperial e até meados do século XX era eminentemente um local de produção rural. Está distante 60 km do centro da cidade e apesar de situar-se na direção onde aconteceu a expansão econômica dos últimos tempos, ainda é a região mais pobre da cidade. O bairro registra números de saneamento básico e urbanização muito próximos da média da cidade, mas por conta dos baixos índices de educação e renda tem o pior índice de desenvolvimento humano do município (PNAD/IBGE 2001). O CEMS se constituía no principal local de lazer da região. Com excelentes instalações esportivas como piscinas, quadras e campo de futebol, todos em dimensões oficiais, tornou-se espaço de circulação de praticantes de esporte de todas as idades e não apenas das classes populares, mas também das camadas médias da população. No local funcionava um projeto sócio-educativo da prefeitura, onde seus agenciadores políticos objetivavam a inclusão social. As aulas de iniciação esportiva gratuitas, orientadas por professores de educação física, eram a principal referência. As mulheres eram maioria. A participação de mulheres adultas7 era de 70% do total de usuários nessa faixa etária. Elas praticavam todas as atividades, mas com predomínio nas modalidades individuais relacionadas à estética e bem estar corporal. Nos esportes coletivos de confronto elas representavam menos de 30% do total de praticantes. Com origem na região, quase todas freqüentaram escolas públicas, algumas alcançaram a universidade, muitas no curso de educação física. Em sua maioria circularam por diversas modalidades na iniciação esportiva, mas nessa fase poucas tiveram passagem pelos esportes coletivos de confronto no CEMS. A idade de 15 anos marca uma tendência de entrada. Quando feita a escolha, ao contrário das praticantes de outras modalidades, as mulheres optavam por praticar apenas a sua modalidade preferida. Os esportes coletivos de confronto – o futebol principalmente – eram reconhecidos como esportes mais de homem. Na opinião de professores e gestores do projeto, era um fato cultural, que não teria como ser mudado por intermédio de suas intervenções pedagógicas. Por participarem desses esportes, as praticantes se percebiam desacreditadas em relação a seus atributos mais gerais, com isso esperavam, nos termos de Goffman (1988), que esta “identidade social virtual” estivesse sempre ocultando sua “identidade social real”. Uma delas relata uma combinação do que pensa sobre o que os outros pensam dela e das praticantes de sua modalidade esportiva: Assim falando um português claro – sapatão. Por que assim, basquete é: ah! Vai andar de homem, gosta de roupa larga não sei o quê… Handebol as meninas são muito mais, futebol também, entendeu? Agora vôlei não, assim, as meninas são mais, assim, delicadas entre aspas, né? Dependendo do lugar que você for, pô! Eu gosto de jogar basquete e futebol, uso muito roupa larga, pôxa! Aí chegam assim, vêem de longe – ih! Aquela garota é sapatão. Nada a ver, não quer dizer nada. Segundo Goffman (1988), O estigma funciona, entre pessoas sem laços de intimidade, como mecanismo de previsão dos atributos que cada um deveria possuir, de acordo com o lugar em que se encontra, e assim, norteia as atitudes de ambas na interação face-a-face. Essa classificação, no entanto, provoca uma hierarquização entre as pessoas e o estigma se estabelece quando uma pessoa “normal” imputa características depreciável nas “estigmatizadas”. É interessante observar como a praticante estabelece uma hierarquia, a partir da centralidade de sua modalidade – o basquetebol: menos masculino que handebol e futebol, e diferente das delicadas entre aspas do voleibol.Nota-se, como Goffman aponta, que “o normal e o estigmatizado não são pessoas e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos” (p. 148). A praticante mostra que o estigma é tanto sentido como utilizado por todos, para hierarquizar sua posição e organizar a face que será apresentada, de acordo com o cenário onde ocorre a interação. A identidade é “o que está em jogo nas lutas sociais” (CUCHE, 2002 p.185). Sendo assim, está sempre relacionada à outra e ambas em uma escala hierárquica, onde quem tem mais cotas de poder tem melhores condições de estabelecer fronteiras e impor quem somos nós e quem são os outros, no mapa cultural. Para as praticantes de esportes coletivos de confronto, o espaço simbólico contestado se materializava nas praticantes dos esportes de tradição feminina. Os termos frescas, delicadas entre aspas ou cheias de não me toque aparecem de formas variadas para explicar o perfil dessas outras mulheres. Já sapatão e brutas marcava como as praticantes dos esportes coletivos de confronto percebiam a identidade imputada a elas. A alteridade está marcada sempre nas categorias da agressividade e disputa coletiva, tal como nos espaços masculinos reservados apontados por Dunning (1992). A masculinidade era sempre exposta como uma identificação negativa atribuída a elas. Já os atributos de resistência, agilidade e sagacidade, seja para o jogo ou transportadas para qualquer outra atividade do cotidiano, faziam parte da sua identificação afirmativa. Esta identificação afirmativa e a camaradagem, que elas demonstram nas falas, gestos, atitudes, são as razões mais relevantes para as veteranas justificarem a sua permanência nesses esportes. O pertencimento a um grupo se une a atitude lúdica e o gosto para que as meninas que jogam bola encontrem ali uma reafirmação de suas distinções dos tipos femininos tradicionais. Simmel (2005), já no início do século XX, apresentava as transformações que ocorriam no modo de vida dos indivíduos em razão da complexidade da vida urbana. Um dos aspectos fundamentais levantados pelo autor, em decorrência das rápidas mudanças e do grande e heterogêneo número de interações sociais nas grandes metrópoles, inverso ao modo de vida tradicional, é a “atitude blasé” como condição necessária para sobrevivência e proteção do indivíduo. Atitude que não se trata, segundo o autor, de uma indiferença ou frieza da alma em relação aos outros, mas uma forma de reserva, que precisamente garante ao indivíduo uma espécie de liberdade pessoal, ao estabelecer suas fronteiras de segurança na cidade. Simmel compara essa situação com a fórmula mais geral do desenvolvimento da vida social: Um círculo relativamente pequeno, com uma limitação excludente rigorosa perante círculos vizinhos, estranhos ou de algum modo antagônicos, e em contrapartida com uma limitação includente estrita em si mesmo, que permite ao membro singular apenas um espaço restrito de jogo para o desdobramento de suas qualidades peculiares e movimentos mais livres, de sua própria responsabilidade. (p. 583) Wirth (1967) sugere que esses grupos tenham entre os principais fatores significantes para o estabelecimento desses espaços reservados a renda, as características raciais, o status social, os costumes, gostos, preferências e preconceitos. Park (1967), mais especificamente, identifica “regiões morais” na cidade – locais isolados de encontro de afinidades, onde é possível emancipar impulsos, paixões e ideais vagos da ordem moral dominante. As regiões morais são para o indivíduo, que tem seus impulsos reprimidos pelo processo de socialização do modelo comunitário, uma alternativa de expressão mais livre de sua individualidade. É nesse processo que, segundo Park, ganha funcionalidade para a cidade, o esporte e a diversão. Hughes (1971; 1980), pensando na totalidade da vida, demonstra a importância dos momentos críticos vividos por uma pessoa. Tendo como contexto a relação do individuo na metrópole, na esteira do pensamento de Simmel e Whirth, Hughes afirma que a ocupação profissional e o lazer são especialmente importantes para visualizar as etapas do ciclo da vida moderna. Nessas atividades da vida cotidiana acontecem os ritos de passagem, que levam o individuo de um status a outro. Hughes alerta que esses ritos, como momentos críticos, nem sempre seguem uma ordenação intencional e institucionalizada, também podem não ser completamente conscientes, mas acarretam uma nova combinação na vida, com seus conseqüentes riscos e alegrias para o indivíduo. Tais ritos de passagem vão marcando as carreiras de cada indivíduo na sociedade. Hughes entende carreira, então, como um movimento de perspectiva, no qual a pessoa vê sua vida como um todo, interpretando o significado de seus vários atributos, ações e do que pode acontecer para si. Além disso, esta perspectiva, na qual o individuo se orienta, tem como referência uma ordem social e um típico encadeamento seqüencial da atividade que ele divide com os demais da mesma ocupação. Exatamente pelas carreiras serem ações coletivas, que é possível projetar e seguir em frente. Pois, no curso da carreira, através das escolhas individuais de cada pessoa, com referência nas outras, é que se interpreta e se encontra o seu próprio lugar no mundo. O artigo, então, pretende demonstrar que a permanência no futebol do CEMS depende de um ritual, que inicia a carreira das praticantes no grupo. Vai apresentar que o sucesso da passagem por essa fase depende de como a praticante novata interage e assimila os valores estabelecidos pelas líderes.
Material e método
Durante a pesquisa foram observadas, sistematicamente, durante seis meses, todas as 35 aulas da turma de futebol exclusiva de mulheres, que aconteciam duas vezes por semana. Utilizei como instrumento de coleta inicial a pauta de presença da turma. Além dos dados de comparecimento, comum a este documento, foi possível identificar o dia de entrada na turma e a idade de cada praticante, bem como a ordem de chegada de cada uma delas no decorrer dos meses. Estes dados permitiram analisar o tempo e as condições que cada uma utilizou para tentar permanecer ou desistir da atividade. A história, anterior ao início das observações, é importante para o entendimento de como foi constituído o núcleo de líderes no grupo. Através de entrevistas com professores, gerentes e praticantes foi identificado uma ruptura. Devido a constantes reclamações sobre supostas condutas das praticantes de futebol, associadas à homossexualidade, foram instituídas mudanças na turma. Estas acusações se referiam ao modo de parte das praticantes se vestirem e se comportarem diferente do modelo que se esperava para uma mulher. Para os professores e gestores do CEMS, aquelas eram mulheres desviantes e a inclusão social sinônimo de conformidade às normas tradicionais. As praticantes de futebol estigmatizadas tiveram que encontrar outro local do bairro para jogar, pois não se adaptaram as exigências. As que não representavam esse perfil mantiveram-se na turma e tornaram-se as líderes ao aceitar as restrições impostas. O CEMS não apresentava medidas discriminatórias objetivas, mas reduziu as oportunidades do grupo de cultura diferente – aquele que apresentava distinções aparentes do modelo normativo. Assim, desde as primeiras observações, foi possível categorizá-las em antigas ou novatas, de acordo com a participação na turma anterior ou não. Considerei como pretendentes somente aquelas que compareciam em uma segunda aula seguida, a partir do início da minha observação. O número de praticantes variou entre 11 e 18 por aula, mas passaram pela quadra e foram analisadas 40 mulheres. Além disso, todos os dias, outras mulheres, que gostariam de participar ou fizeram uma aula de experiência, estiveram no local. O que faz com que o número de pretendentes no período tenha sido próximo do dobro da amostra. Durante o período observado, participaram das aulas mulheres de 11 a 24 anos. 85% tinham mais de 15 anos. Em relação à freqüência, 48% fizeram duas aulas e apenas 20% mais do que 10 aulas. Os dados apontam para uma grande e diversa procura de mulheres querendo praticar futebol naquele ambiente e uma alta precocidade de desistências. O fato é um paradoxo, se considerarmos que a expectativa dos agenciadores era de inclusão social na atividade esportiva e demonstra, também, a grande procura pelo futebol feminino. Ao final do tempo de observação foi possível dividi-las, além de antigas e novatas, naquelas que se ausentaram ou que perseveraram. As que não estiveram na maior parte das aulas, ou que não retornaram antes do fim da observação, foram consideradas ausentes. As que perseveraram são aquelas que mantiveram presença na maior parte das aulas e estavam presentes nos últimos dias. Assim o grupo ficou dividido em quatro categorias: antigas que perseveraram (4); novatas que perseveraram (5); antigas ausentes (12); e novatas ausentes (19). Partindo dessa divisão, analisei o comportamento da freqüência diária individual em cada uma das quatro categorias, e então, cruzei este dado com os dados anteriores de faixa etária, tempo de entrada no grupo e participação nas aulas. Em seguida, através da observação do cotidiano, registradas em diário de campo, foi possível compreender como as praticantes, a partir da sua condição inicial, interagiram nesse cenário para tentar continuar jogando.
Resultados
As antigas que perseveraram estavam todas entre 18 e 24 anos. Iniciaram sua participação no grupo em agosto, freqüentando quase todas as aulas desde sua entrada. Este grupo mostrou-se extremamente homogêneo, não havendo nenhuma variação marcante nos dados. Fazem parte dessa categoria as meninas que conquistaram a liderança da nova turma. Elas tinham o poder de dialogar com o professor e estabelecer o clima da aula. Todas sabiam jogar e ditavam o ritmo dos jogos. Em algumas aulas, o tom era de plena competição e disputa pela vitória no jogo. Em outras situações, a diversão imperava e debochar ou enaltecer umas as outras pelas jogadas mal sucedidas ou por lances bonitos sem objetividade era a ordem. O jogo girava em torno delas. Existia excelente convívio entre todas desse grupo, mas era notório, na rede de relações, ações em duplas bastante fixas, fossem no jogo ou nas demais interações do grupo relacionadas a prática do futebol. As novatas que perseveraram se dividiam em dois tipos. O maior (4) era de praticantes menores de 15 anos, freqüentaram de 6 a 10 aulas e tiveram faltas intercaladas a estas presenças. Algumas vieram acompanhadas pelo pai, outras sozinhas. Como nenhuma delas sabia jogar bem e tendo dificuldades em acompanhar os jogos com as mais velhas, fisicamente dominantes, elas aguardavam, juntas e do lado de fora da quadra, uma oportunidade de jogar. Tornaram-se companheiras e não se incomodaram de estar, a maior parte do tempo, assistindo. Como não disputavam ou negociavam sua participação nos jogos, não sofriam resistência das veteranas; ao contrário, estas cuidavam em alguma medida para que elas estivessem satisfeitas, dando-lhes atenção e dicas nos exercícios de fundamentos antes dos jogos. O outro tipo era composto por uma única praticante, 24 anos, que entrou no grupo ainda em agosto e participou de quase todas as aulas desde então. Ela jogava muito bem e era bastante forte. Rapidamente se tornou amiga de uma das líderes, que não apresentava o vinculo de dupla das outras. As afinidades eram grandes entre elas. As duas tinham em comum a prática da religião como norteadora de seus valores morais e apesar de freqüentarem igrejas diferentes, comungavam os mesmos projetos de vida e os valores morais sobre a homossexualidade como desajuste espiritual do indivíduo. As antigas que se ausentaram estavam entre 18 e 24 anos. Quase todas participaram apenas de duas aulas. Tinham origem na antiga turma e foram as poucas que tentaram fazer parte do novo momento. O retorno era sempre individual, indicando independência do grupo anterior. Elas não conseguiram perseverar. Recebiam a autorização do professor para fazer a aula e eram informadas das novas regras da turma. As líderes mantinham relações cordiais e de amizade com elas, mas impunham, através de atitudes, as normas estabelecidas no ambiente. Falar baixo sem expressões agressivas, rir pouco, não comentar as jogadas das iniciantes e cumprir as exigências dos exercícios de fundamentos propostos pelo professor era sentido mais fortemente nas aulas em que uma delas estava presente. Existiram 3 praticantes, no entanto, que apresentaram as mesmas características desse grupo, apenas sua freqüência, de 2 a 6 aulas, foi um pouco maior e dispersa ao longo do período de observação. Estas não desistiram de fazer parte do grupo e estavam presentes no último dia, onde ocorreu um torneio como atividade culminante. Essas praticantes eram aceitas em condições especiais. Mesmo não cumprindo o horário de chegada, conseguiam de imediato, lugar no jogo; além disso, dispunham de poder de voz para rever decisões do professor ou das líderes. Entre esses dois tipos evidenciou-se a mesma divisão ocorrida na ruptura da turma. As praticantes com trânsito livre nas aulas tinham uma aparência menos destoante do modelo feminino tradicional e um nível de escolaridade maior do que aquelas que desistiram de retornar. As novatas que se ausentaram tinham representantes de 14 a 22 anos. Tiveram entrada em número crescente durante os meses. Essa categoria, além de maior, apresentou as características mais variadas em idade e período de entrada. Quase todas participaram de 2 aulas, apenas 4 participaram de 6 ou mais aulas. Em todos os casos, a freqüência diária foi quase ininterrupta. O fato de grande parte desistir logo na segunda aula e as demais tentarem por um período contínuo até desistirem indica uma tentação não realizada. Essa categoria é a mais difícil de ser explicada por não existir tempo para observação. Entretanto, o que se notava, no grupo das líderes, era uma impessoalidade e até silêncio, que causava um ambiente de constrangimento. Não havia sequer cordialidades, na entrada e na saída, com nenhuma das novatas. Grande parte não tinha competência para o jogo. Era necessário que a novata entrasse – isso era permitido a ela na necessidade de completar o número de jogadoras necessárias para o jogo – e conseguisse articular todas as interações e códigos de conduta de imediato; caso contrário elas jogavam, mas não interagiam. Um exemplo dessa atitude era a comemoração de um gol por uma novata, além de ser um ato solitário, se tornava constrangedor a todos que estavam presente. As que participaram de mais de 6 aulas tinham idade similar as líderes e desempenho atlético compatível para acompanhar o jogo; no entanto, essa condição não se transformava em uma participação efetiva. Essas novatas, em conversas comigo, reclamavam de não receberem a bola, mas as observações não apontavam isso. Eu não percebia muitos momentos em que, na lógica do jogo, a bola devesse ir para uma das novatas e não fosse feita tal tentativa de ação. Eu só observava que não havia uma aproximação pessoal e atenção das líderes, como havia com as novatas de menor idade. A integração ao grupo, para as praticantes com idade semelhante às líderes, dependia quase exclusivamente da iniciativa e perseverança da própria novata.
Discussão
As análises sugerem a existência de um ritual de passagem para a aceitação de novas praticantes. Desde sua entrada até o pertencimento ao grupo, a pretendente precisava provar suas qualidades para passar do status de estranha, para o de estabelecida. Ela precisava provar ser “uma de nós” 8. Esse ritual marcava a carreira das novas integrantes no grupo. Utilizo a atitude emocional da pretendente para analisar esse ritual de passagem, dividido em quatro etapas. A primeira é a da tentação, onde a praticante se aproxima, tem o desejo de pertencer e se arrisca em fazer parte do grupo. Essa tentativa está vinculada ao seu projeto individual9. A segunda é a perseverança, onde a praticante precisa enfrentar as provações internas do grupo para garantir a continuidade da tentativa. Ao mesmo tempo, porém, que experimenta a identificação com o grupo de praticantes de futebol, precisa negociar uma nova linha10 em sua vida fora do grupo, pois precisa justificar pertencer a um grupo de jogadoras de futebol. A terceira é a permanência – a culminância desse ritual de entrada na carreira e que define que a praticante faz parte do grupo, ao reconhecer que o grupo reconhece que ela faz parte. Essa etapa se caracteriza por um duplo processo de transformação do individuo – a apropriação das normas e símbolos comuns do grupo e a consolidação do futebol como um elemento constituinte do seu estilo de vida e de sua identidade. A quarta etapa é a dispersão, quando, em alguma das etapas anteriores ou após todas elas, a praticante não conseguiu, ou não quis, dar continuidade ao seu projeto individual de jogar e pertencer ao grupo. Ao final do ano, entre todas que passaram pelo processo de observação, 12 praticantes estavam presentes. Junto as 4 antigas que permaneceram – as líderes – e as 3 antigas ausentes, que tinham status de orientadoras do grupo, apenas uma novata, que sabia jogar e se uniu a líder que não tinha dupla fixa. Todas essas tinham proximidade de idade. As outras novatas que conseguiram perseverar foram as 4 menores de 15 anos, que se agruparam entre si, com distanciamento das demais da turma, observando e esperando oportunidade de participar. Existia grande distinção de classe social, aparência, idade, escolaridade, desempenho atlético e estilo de vida nas praticantes que tentaram jogar. Nenhuma dessas categorias se mostrou, isoladamente, suficiente para garantir a permanência. O desempenho atlético era fundamental. Como a aprendizagem no grupo era uma superação individual, saber jogar tornava-se significativo para passar pelo ritual;entretanto, as meninas mais jovens não sabiam jogar e mesmo assim perseveraram durante todo o período de observação. A pouca idade pôde ser uma porta de entrada, pois evitou a atitude impessoal das líderes, que causava constrangimento. Do mesmo modo, as praticantes que tinham a mesma idade das líderes, mesmo tendo um bom desempenho atlético, necessitavam superar a indiferença, provando respeitar e cumprir as normas internas estabelecidas. O pertencimento a uma dupla catalisava o processo de apropriação dos hábitos do grupo, seja com uma líder ou entre novatas. A classe social e escolaridade garantiam eficiência nessas afinidades em dupla. Entretanto, praticantes com estilos de vida diferentes e percebidas como de classe social inferior ás líderes conseguiram perseverar e permanecer no grupo, por jogarem bem e por se conformarem no limite das normas impostas por elas. As praticantes que perseveraram, demonstraram competência em acompanhar o grupo das líderes ou em aceitar uma espécie de “adaptação secundária11” que lhes garantiu algum espaço, mesmo que não o melhor espaço. As líderes ocupavam a posição de guardiãs de suas próprias tradições. Em movimentos silenciosos, como estratégia coletiva pouco consciente, controlavam as ações das novatas e contribuíam para a seleção das que permaneciam. Ao mesmo tempo em que necessitavam manter, em alguma medida, as normas institucionais, equalizavam as identidades das praticantes em conformidade com as suas. No decorrer do ano seguinte, as líderes, junto com as orientadoras e a novata integrada ao grupo, dispersaram juntas dali. Elas passaram a se encontrar em um campo atrás do CEMS, onde uma delas atuava como professora em outro projeto esportivo. Na esteira dos estudos de Hughes, Goffman (1987) e Becker (1973, 1977) revelam a possibilidade de identificar uma carreira em todas as experiências sociais com certa duração e um universo fechado ou quadro institucional estruturado. Podemos então traçar uma breve análise comparativa entre os seus estudos e o futebol no lazer das mulheres como uma carreira. Goffman, ao se interessar pelos indivíduos em instituições totais, como os doentes mentais, observa os aspectos morais em transformação no curso de suas carreiras de reclusos. Afirma que as representações que o sujeito tem de si se transformam de acordo com os controles sociais exercidos pela instituição. Já Becker, demonstra a existência de um processo de aprendizagem por que passam os fumadores de maconha que vão ajustando as interpretações de sua conduta desviante, justificando, junto aos veteranos de seu grupo, razões e significados positivos para estar ali. A carreira das praticantes de futebol segue uma combinação dessas análises. Se a iniciativa de entrada é voluntária, as transformações necessárias para sua perseverança no grupo são muito mais atos de sobrevivência do que de aprendizado orientado em etapas. As interações iniciais orientam mais a seletividade do que a possibilidade de transformação progressiva das identidades. A instituição em que o grupo estava inserido, por sua vez, é aberta e pública, mas exerce pressões de conformidade, numa combinação das suas normas mais gerais com as estabelecidas internamente pelas líderes. A praticante de futebol, vai então, como sugere Hughes sobre o curso de uma carreira, interpretar e escolher, com referência no grupo, seu lugar no mundo. Essas escolhas individuais, nos afirma Velho (1987; 1994), é um processo ambíguo, que combina individualização e desindividualização do sujeito. Como característica da sociedade complexa contemporânea, a valorização da individualidade convive com as imposições das instituições, formadas por outras tantas individualidades. A trajetória do indivíduo, para se tornar viável, “vai depender do jogo de interação com outros projetos individuais ou coletivos, da natureza e da dinâmica do campo de possibilidade” (1994, pg 47). O encontro desses interesses comuns pode formar, nos termo de Velho (1994), um “projeto social”. Ao compreender a riqueza simbólica e o potencial de transformação de um “projeto social”, os indivíduos, aqueles que têm essa alternativa em seu campo de possibilidades, podem se submeter as exigências do grupo, se conformando com suas normas e símbolos, na perspectiva dos ganhos que essa carreira lhe oferecerá.
Conclusões
As praticantes de futebol do CEMS, em sua maioria, se conheceram no local da atividade e apresentaram grandes distinções nas suas identidades sociais. A afinidade inicial que vai uni-las é o gosto pelas atividades esportivas com características de agressividade. A partir daí, as redes de interação fazem circular as informações comunicadas pelas líderes, construindo um espaço de proteção para lidar com o estigma de masculinização relacionado aos esportes coletivos de confronto. No grupo de futebol especificamente, o ritual de entrada preserva o espaço, nos termos de Park, como uma “região moral” desse grupo de mulheres, que valorizam a agressividade e a camaradagem. O ritual funciona comprometendo as integrantes do grupo a eliminar as expressões individuais, favoráveis ou contrárias, que exacerbe o estigma de masculinização. Por terem construído esse ambiente seguro de sociabilidade, elas podem, então, tentar dar vazão ao desejo de jogar futebol e conviverem entre si, minimizando a imagem da atividade de mulheres homossexuais. Mesmo assim, mais que em outros locais públicos, elas podem expressar com maior fruição suas individualidades, criando fronteiras entre as expressões de feminilidade e se estabelecendo, no mapa cultural, entre o desvio e a conformidade institucional, com uma identidade própria – nem muito brutas, nem muito frescas e sempre discretas.
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