A aula de Educação Física como Fato Social Total
- Doutorando em Educação Física pela UNICAMP; Docente da UNICSUL e da IMES – São Caetano do Sul.
- Mestranda em Educação Física pela UNICAMP; Bolsista CAPES.
- Doutoranda em Educação Física pela UNICAMP; Bolsista CAPES.
- Doutorando em Educação Física pela UNICAMP; Docente da UNICENTRO.
- Mestrando em Educação Física pela UNICAMP; Bolsista CNPq.
- Professor Livre Docente da Faculdade de Educação Física da UNICAMP.
- Mestrando em Educação Física pela UNICAMP; Bolsista CNPq.
- Mestranda em Educação Física pela UNICAMP; Docente da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo.
Resumen
O esforço empreendido neste estudo é para compreender a aula de Educação Física Escolar no Brasil a partir da noção de Fato Social Total construída pelo sociólogo francês Marcel Mauss. O pressuposto desta noção é que, para explicar o que os seres humanos são e o que fazem é insuficiente ter como base os referenciais provindos das Ciências Naturais, com finalidade exclusiva de estudo dos aspectos bio-fisiológicos do organismo. Para a compreensão do ser humano real, vivente, sujeito, é imprescindível localizá-lo em determinado grupo, identificar seu papel social e o cenário cultural ao qual suas ações são dirigidas. As expressões humanas são construídas pela unidade composta pelas dimensões sociológica, psicológica e biológica. São ”fenômenos de totalidade, dos quais participam não apenas o grupo, mas também, por ele, todas as personalidades, todos os indivíduos em sua integridade moral, social e mental e, sobretudo, corporal e material” (Mauss, 2003, p.336).
Para Marcel Mauss o ser humano é expressão do grupo a que pertence. Este grupo está contido nas dimensões sociológicas, psicológicas e biológicas da expressão humana. Da mesma forma que o humano pensa, sente, age em correspondência com seu grupo social, este grupo pensa, sente, age, é e quer viver com toda esta comunidade humana (Mauss, 2001). Isso acontece porque há um sistema complexo de simbolismos segundo o qual o ser humano ordena suas expressões. Os símbolos põem em jogo não apenas as faculdades estéticas ou imaginativas do ser humano, mas todo o seu ser sociológico, psicológico e biológico simultaneamente (Mauss, 2003).
INTRODUCCIÓN
O esforço empreendido neste estudo é para compreender a aula de Educação Física Escolar no Brasil a partir da noção de Fato Social Total construída pelo sociólogo francês Marcel Mauss. O pressuposto desta noção é que, para explicar o que os seres humanos são e o que fazem é insuficiente ter como base os referenciais provindos das Ciências Naturais, com finalidade exclusiva de estudo dos aspectos bio-fisiológicos do organismo. Para a compreensão do ser humano real, vivente, sujeito, é imprescindível localizá-lo em determinado grupo, identificar seu papel social e o cenário cultural ao qual suas ações são dirigidas. As expressões humanas são construídas pela unidade composta pelas dimensões sociológica, psicológica e biológica. São ”fenômenos de totalidade, dos quais participam não apenas o grupo, mas também, por ele, todas as personalidades, todos os indivíduos em sua integridade moral, social e mental e, sobretudo, corporal e material” (Mauss, 2003, p.336). Para Marcel Mauss o ser humano é expressão do grupo a que pertence. Este grupo está contido nas dimensões sociológicas, psicológicas e biológicas da expressão humana. Da mesma forma que o humano pensa, sente, age em correspondência com seu grupo social, este grupo pensa, sente, age, é e quer viver com toda esta comunidade humana (Mauss, 2001). Isso acontece porque há um sistema complexo de simbolismos segundo o qual o ser humano ordena suas expressões. Os símbolos põem em jogo não apenas as faculdades estéticas ou imaginativas do ser humano, mas todo o seu ser sociológico, psicológico e biológico simultaneamente (Mauss, 2003). Desta forma, compreender a aula de Educação Física Escolar no Brasil, a partir da noção de Fato Social Total implica compreender as expressões humanas (Jogo, Dança, Esporte, Ginástica, Luta) como uma totalidade. Outra é reconhecer que professores e alunos são seres inacabados e que seus papéis sociais representam também uma totalidade. O referencial sócio-cultural e a noção de Fato Social Total de Marcel Mauss é fundamental para o estudo e compreensão da aula de Educação Física Escolar como uma prática cultural, construída por sujeitos inseridos em em um contexto específico. Este é um reconhecimento importante para profissionais que pretendem estudar e atuar em uma área que intervém na vida humana em suas diversas dimensões, bem como é um projeto que vem se consolidando no Brasil, pelo menos através do esforço que parte de alguns grupos de estudo e de pesquisa no país, como no caso do GEPEFIC . Historicamente, o estudo da Educação Física Escolar foi pautado majoritariamente em referenciais teóricos provindos das Ciências Naturais para o entendimento da aula, do ser humano e suas expressões. Essa tradição gerou ações pedagógicas baseadas em modelos já prontos, cuja finalidade era a melhoria da aptidão física e do rendimento, bem como a manutenção e promoção da saúde, da higiene, da raça e da moral, por meio de exercícios físicos e do esporte, construídos a partir de noções representativas de instituições médicas e militares que influenciaram fortemente a introdução da Educação Física Escolar no Brasil (Soares, 2004). As noções contidas nas obras de Marcel Mauss são determinantes para contribuir no estudo da Educação Física Escolar e no contexto específico do Brasil, no sentido de se constituírem em fundamento teórico para que o entendimento de ser humano, suas expressões e de aula, possam ser (re) pensadas e ampliadas nesta área do conhecimento, de maneira a considerar o tríplice ponto de vista (biológico, psicológico e sociológico) para das ações humanas. As idéias do referido autor começam a ser introduzidas na Educação Física brasileira a partir da década de 1980. Uma iniciativa que pode retratar esta introdução é o texto da antropóloga Kofes (1985), que incita a discussão de que “o corpo é expressão da cultura, portanto, cada cultura irá expressar diferentes corpos porque se expressa diferentemente enquanto cultura” (p.52). Essa discussão acontece a partir da leitura de ‘Les techniques du corps’, uma célebre comunicação de Marcel Mauss apresentada à Sociedade de Psicologia em 17 de Maio de 1934 (Mauss, 2003). Na Educação Física Escolar brasileira, a noção de Fato Social Total é introduzida pelos estudos de Jocimar Daolio. Em sua primeira obra, publicada em 1995, propõe um referencial sociocultural para o estudo do ser humano e suas expressões. Tal referencial inova a noção de técnicas corporais predominante na área, por ter como base o elemento simbólico que está presente nas expressões dos alunos não somente no contexto escolar, mas também no familiar e no comunitário. A noção de Fato Social Total, na Educação Física, tem contribuído para explicar, cientificamente, fenômenos que parecem não ser somente de natureza biológica, como se pensou durante muito tempo na área. Pois a idéia de eficiência técnica no esporte, de aptidão física, de saúde, de higiene, de raça pode ser vista por um olhar diferente, mais amplo, buscando a complexidade do ser humano em um contexto, em uma cultura. O ser humano é a união indissociável de dimensões sociológicas, psicologias e biológicas e estas dimensões podem ser encontradas em qualquer expressão humana, uma vez que o ser humano e suas expressões estão inseridos em um plano simbólico cultural. A Educação Física Escolar reconheceu, também a partir da contribuição desta noção de Fato Social Total e outros referenciais teóricos das Ciências Humanas, que o ser humano é um ser cultural (Geertz, 1973). Assim, hoje é possível falar de cultura na aula de Educação Física Escolar no Brasil sem causar estranhamento (Daolio, 2002). Mas realizar esta afirmação implica considerar que a cultura influencia o ser humano, suas dimensões, suas expressões e seu grupo social, assim como o ser humano influencia a cultura. Ao nascer no Brasil, o ser humano está posto em contextos humanos sem os quais ele viveria pouco e de forma precária. Então, não basta estar vivo, pois esses contextos são exigentes e demandarão esforços. Como o ser humano não nasce sabendo de tudo o que é preciso para viver, ele precisa aprender a viver. É preciso aprender a se expressar à maneira humana. É preciso ser, sentir, pensar e agir como humano. Brandão (2002) afirma que a cultura é o mundo que construímos entre nós para aprender a viver, desde que somos seres humanos. Ela corresponde a um processo que possibilita ao ser humano a elaboração de expressões e interpretações no mundo. O ser humano elabora estas expressões e interpretações quando interage com outros humanos de um grupo social. É nesse processo de imersão da pessoa em uma teia de estímulo e correspondência mútua, estabelecida entre as pessoas de um grupo social, que encontramos a noção de cultura. A cultura é um processo pelo qual os seres humanos “orientam e dão significados às suas ações [aos seus sentimentos, pensamentos, a si próprios, às pessoas, às expressões, à vida e ao mundo] através de uma manipulação simbólica que é atributo fundamental de toda prática humana” (Durham, 2004, p.231). Essas interações se iniciam de muitas maneiras na vida humana, uma delas – talvez a principal – é através da educação. O humano em processo de educação convive quase sempre dentro de três cenários culturais da vida cotidiana: o mundo da família; o da comunidade; e o escolar (Brandão, 2002). No mundo familiar, iniciado em um grupo doméstico em um lar, ou o que mais se aproxime disso, o ser humano pode viver momentos relevantes de socialização. Ele tem interações significativas com membros próximos dentro de um mesmo círculo de cultura cotidiana que se constituirá em uma base pertinente para seus outros círculos mais amplos. A família é o ‘lugar de todos’. Contexto em que se divide um conjunto de tarefas desiguais em intensidade de investimentos, responsabilidade, afeição e esforço. Esta equação, que a cada integrante do grupo atribui direitos e deveres, pode oscilar entre períodos de equilíbrio e de crise (Brandão, 1990). No mundo comunitário, os círculos culturais da vida humana passam a ser os parentes, ou aqueles com quem se está freqüentemente em um mesmo lar, e a vizinhança, aqueles que moram no mesmo bairro ou perto do lar. Aqui, nutre-se uma proximidade em relacionamentos formais e utilitários, e uma respeitosa condição de evitar os outros, em um distanciamento motivado ou uma hostilidade velada ou aberta (Brandão, 2002). É no mundo escolar que o ser humano continua a crescer e a se desenvolver através de suas expressões e interpretações. Ou seja, ele pode e deve alargar os círculos de vida e de cultura em relação aos outros círculos. A escola completa os três cenários da vida cotidiana do ser humano em que a educação é um processo cultural: uma prática social que envolve a interação de símbolos e significados em um processo de níveis e modos sempre mais amplos e profundos. A educação escolar é, por sua vez, um processo cultural especial. Possui características próprias em relação à educação que ocorre fora da escola. Há uma unidade de construção e transmissão de formas de cultura à pessoa através de tempos, espaços, circunstâncias, relacionamentos, conteúdos e metodologias pedagógicas adequadas a fins formais (Brandão, 2002). O ser humano constrói formas de cultura em diversos contextos como o familiar, o comunitário e o escolar. Considerar a Educação Física Escolar como uma prática cultural (Daolio, 2002) implica interpretá-la como sendo responsável pela interação de símbolos e significados (familiares, comunitários e escolares) em um processo cultural especial de níveis e modos sempre mais amplos e profundos, que aborda de forma objetiva e elaborada expressões humanas como o jogo, a dança, a luta, o esporte, a ginástica, dentre outras. Como negar que no Brasil há expressões humanas que são mútuas e correspondentes na Educação Física Escolar e fora dela? Um exemplo disso é o futebol. Um menino brasileiro, ao nascer, pode receber muitos presentes, um deles – talvez o mais importante hoje – seja a bola de futebol, enquanto uma menina pode receber outros tipos de brinquedos (Daolio, 2003). Desde pequeno, este menino poderá aprender a se expressar com a bola. Uma das maneiras mais comuns disso acontecer é no jogo de futebol que se realiza em casa, na rua e/ou em campos de comunidades. Nesse jogo, o menino não se expressará apenas biologicamente, realizando movimentos que podem ser analisados biomecânica e/ou fisiologicamente, mas também psicológica e sociologicamente. O que está em foco não são movimentos apenas físicos, mas também as dimensões psicológicas e sociológicas daqueles que se encontram envolvidos com o jogo e seus significados. O menino, ao realizar um drible bem sucedido, através de suas dimensões sociológicas, psicológicas e biológicas, pode mobilizar os outros seres humanos que também são totais. Ao chegar na aula de Educação Física, esse menino não abandonará esta expressão construída em casa, na rua, na comunidade. Se os alunos se expressam em casa, na comunidade e/ou em outros contextos além do escolar, estas formas de cultura discentes influenciam a aula dos professores de Educação Física quando os alunos estão na escola. Pois, é impossível descartar durante a aula essas formas de cultura referentes a uma tradição construída pelos alunos ao longo de suas vidas em determinado contexto extra-escolar. Estas formas de cultura discentes formam, então, significados específicos a serem manipulados pelos docentes. Desta forma, professores de Educação Física Escolar poderiam atuar de forma elaborada e articulada como mediadores pedagógicos de significados escolares e extra-escolares de expressões humanas. Atualizam significados – escolares e extra-escolares – continuamente (Daolio, 2002). Deste ponto de vista, uma aula de Educação Física Escolar é palco de uma dinâmica interativa infindável, na medida em que há um movimento pleno de significados e sentidos (familiares, comunitários e escolares) que constituem as relações interpessoais, produzidas pelos gestos, sinais, expressões, palavras murmuradas, silêncios, gritos, risos e espantos compartilhados (Fontana, 2000). Em outros termos, a aula de Educação Física Escolar no Brasil é um fenômeno de totalidade, em que estão contidos significados não apenas escolares, mas familiares e comunitários que se revelam nas expressões de cada discente. A aula é o todo. Um todo constituído de diferentes formas de significados, pois a escola faz parte de um contexto mais amplo da vida em sociedade. Por outro lado, os seres humanos envolvidos nesta aula, professores e alunos, são eles próprios totalidades, uma vez que se expressam sociológica, psicológica e biologicamente, mobilizados pelas formas de cultura existente na Educação Física: a escolar, a familiar e a comunitária. Professores e alunos, atentos para este Fato Social Total da aula, poderão atuar de modo a fazer uma melhor leitura das expressões humanas realizadas e construídas na Educação Física Escolar. Ao entender a lógica simbólica que mobiliza a gama de diferentes expressões humanas, dos diferentes valores atribuídos a estas expressões, tomaria este entendimento como um instrumento de trabalho, uma vantagem, algo a ser valorizado. Ao perceberem esta constante interação simbólica que mobiliza fenômenos de totalidade na aula, professores e alunos poderiam priorizar e enfatizar na aula a noção de ‘troca’, também total – Mauss (2003) diria ‘potlatch’, um “fenômeno daqueles que propomos chamar ‘totais. […] as coisas que são trocadas, têm, igualmente, uma virtude especial, que faz com que sejam dadas e sobretudo retribuídas” (p.242). Assim como no ‘potlatch’, o que se perceberia que é trocado de forma total na aula não são bens e riquezas, moveis e imóveis, coisas úteis economicamente, mas significados. E esta troca total poderia também acontecer na aula em termos de um contrato, de prestações e contraprestações que se estabeleceriam de forma voluntária, por meio de significados. É como se professores e alunos passassem a estabelecer uma relação de mediação simbólica, através da troca de significados. Uma aula seria considerada uma fusão de significados (familiares, comunitários e escolares) em uma totalidade sociológica, psicológica e biológica por meio da troca. Se uma troca entre seres humanos pressupõe a existência de dois ou mais seres humanos, as expressões discentes, construídas de uma forma total, poderiam ser vistas como mobilizadas na aula não apenas por significados familiares ou comunitários ou escolares. Na troca, professores e alunos poderiam ser vistos como mobilizados por uma mediação que abordasse os significados desses três contextos. A atuação de professores e alunos com base na dimensão simbólica é um reconhecimento importante para contrapor a tradicional forma de atuação da Educação Física, voltada para a homogeneização do ser humano e suas expressões que, sutilmente, gerou desigualdade e discriminação entre os alunos no Brasil. Não é raro ouvir alguém dizer: ‘Você dá aulas de Educação Física Escolar, eu nunca gostei disso na escola’. E quando questionamos o porquê disso, ouvimos: ‘O que os professores pediam para a gente fazer na aula, eu quase nunca conseguia fazer, e nem era muito interessante para mim’. Professores e alunos, apesar de compartilharem o mesmo tempo, espaço e circunstância escolares, podem viver muitas vezes em universos, simbólicos, diferentes. O problema é que esta diferença é deixada de lado. Não é trabalhada por professores e alunos em forma de troca total, de mediação simbólica, durante a intervenção pedagógica. A intervenção pedagógica na aula de Educação Física a partir de noção de Fato Social Total pressupõe que se olhe para o ser humano não de forma fragmentada. Isto gera um contraponto à hegemonia de dimensões fisiológica e biomecânica ao olhar o ser humano e suas expressões na aula. A noção de técnica, que sempre esteve presente na área, está ainda muitas vezes vinculada à idéia de eficiência biodinâmica na aula. Há uma grande preocupação em conhecer e executar os ‘movimentos corretos’ ou as ‘técnicas corretas’ para realizar expressões humanas. Se o ser humano é visto como sendo apenas um conjunto de ossos, músculos, tendões e ligamentos que desenvolvem alavancas responsáveis pelo movimento, basta a compreensão destes, do ponto de vista da eficiência biodinâmica, para que se possa conhecer as melhores e mais corretas técnicas (Daolio, 2002). Isso gera uma naturalização dos movimentos e tende a considerar que se todos os seres humanos possuem o mesmo aparelho locomotor, todos podem – e devem – desenvolver as mesmas técnicas. Mas se consideramos o ser humano na aula como uma totalidade em sua diversidade em que sua expressão se realiza mobilizada pela troca simbólica, e uma técnica como “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (Mauss, 2003, p.401), compreenderemos que a eficiência é fruto de uma constatação tipo ‘tudo ou nada’ ou ‘deu/não deu certo’. Isto é, pode não representar uma construção coletiva em uma explicação, como no caso da eficácia simbólica (Daolio, 2003). Desse ponto de vista, sócio-cultural, professores e alunos poderão considerar a expressão humana durante a execução de uma técnica na aula. Esta expressão não é fruto daquele movimento correto, preciso, econômico quase sempre imitativo dos movimentos de atletas de esporte de alto rendimento, cuja intervenção deve acontecer no sentido de corrigi-lo, aperfeiçoá-lo e padronizá-lo de acordo com este alto rendimento (Daolio, 2002). É uma expressão total, engloba não apenas dimensões fisiológicas e biomecânicas do ser humano, mas sociológicas e psicológicas. Além disso, tal expressão é dinâmica e diversificada, porque sempre é mobilizada pela cultura. E a cultura está em constante processo de produção, porque depende do ser humano, de interações humanas que acontecem nos mais diversos contextos. Geertz (1973) relata que os seres humanos são os únicos animais incompletos e inacabados que se completam e se acabam através de formas altamente particulares de cultura – poderíamos dizer familiar, comunitária e escolar no Brasil. Assim, se o ser humano é um ser incompleto e inacabado porque é um ser cultural, a cultura também é incompleta e inacabada, pois é humana. Os seres humanos precisam produzir, consumir e modificar a cultura cotidianamente nas relações humanas nesses diversos contextos, através da troca, da mediação. As expressões humanas são mobilizadas por símbolos da cultura, elas têm um caráter coletivo, pois representam sinais que devem ser compreendidos no grupo. São linguagens que, como frases e palavras, precisam ser ditas. São mais do que a simples expressão e manifestação de si mesmo, de suas ações, pensamentos e dos próprios sentimentos. A pessoa “os manifesta aos outros, pois assim é preciso fazer. Ela os manifesta a si mesma exprimindo aos outros, e por conta dos outros. Trata-se essencialmente de uma construção simbólica” (Mauss, 2001, p.332). Em suma, a expressão do ser humano é total na aula e fora dela, porque envolve dimensões sociológica, psicológica e biológica deste ser, que está inserido em um contexto educativo cujas formas de cultura familiar, comunitária e escolar estão interagindo e mobilizando estas dimensões humanas por meio da troca total ou mediação simbólica na intervenção pedagógica. Desta forma, a aula de Educação Física Escolar no Brasil é aqui compreendida como Fato Social Total, a partir da noção de Marcel Mauss. As obras de Marcel Mauss, nas quais a noção de Fato Social Total é parte constituinte, foram construídas a partir da influência das obras de Émile Durkheim, nas quais há a noção de Fato Social. Durkheim foi o tio e a maior influência na gestação de toda a carreira de Mauss (Oliveira, 1979). O próprio Mauss reconhece esta influência em sua obra: “Notar-se-á, sem dificuldade, que nos inspiramos diretamente nas idéias expressas por Durkheim em suas diferentes obras” (Mauss, 2001, p.3). Para Durkheim (2005), os Fatos Sociais deveriam ser tratados como coisas, não como coisas materiais, mas tal como elas, embora de uma outra maneira. É coisa todo o objeto de conhecimento que não é naturalmente apreendido pela inteligência, tudo aquilo de que não podemos adquirir uma noção adequada por um simples processo de análise mental, tudo o que o espírito só consegue compreender na condição de sair de si próprio, por via de observações e de experimentações, passando progressivamente das características mais exteriores e mais imediatamente acessíveis às menos visíveis e às mais profundas. Abordar fatos de certa ordem como coisas não significa classificá-los nesta ou naquela categoria do real, mas observar em relação a eles certa atitude mental, social e física. Para Durkheim, “Fato Social é toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais” (2005, p.40). Nesse sentido, estudar autores significativos do pensamento sociológico e antropológico das Ciências Humanas, como o francês Marcel Mauss, nascido em 1872 em Épinel e falecido em 1950 em Paris, é uma prática fundamental na Educação Física Escolar no Brasil para a construção de novos conhecimentos. Isso acontece porque a explicação de determinados fatos da vida humana não é objetiva em si, não está descomprometida do contexto sócio-cultural, e requer um esforço constante de construção de relações com outras épocas, locais e circunstâncias de outros povos. As obras de Marcel Mauss parecem ser sempre uma fonte atualizada, rica de pistas e caminhos para estudos que se destinam ao entendimento da vida humana em todas as suas dimensões. Depois de transcorridos muitos anos da elaboração dessas obras, o pensamento sócio-cultural de Mauss continua vivo, expressando noções sempre prontas para serem exploradas cientificamente. Como ele próprio escreveu certa vez: “O fato social [total], cientificamente descrito, torna-se um elemento da ciência, e deixa de pertencer a tal ou tal país, a tal ou tal época. Está por assim dizer colocado, por força da observação científica, fora do tempo e fora do espaço” (Mauss, 2001, p.27-8). Resta-nos, então, esperar que a compreensão da aula de Educação Física como Fato Social Total possa também alcançar, de alguma forma, outro tempo, local e circunstância.
Bibliografía
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